Me lembro de uma conversa com uma colega de Curso. Numa aula em que os discursos epigráficos post mortem encontrados em diversas sociedades eram abordados, esta colega me disse bem baixinho, quase como um desabafo de dor abdominal: “Ai, eu não gosto desses troços de morto não”.

Não estranhei a fala. Conhecia deveras bastante a moçoila para saber que aquele rostinho juvenil expressava arquetipicamente uma geração que chamo de “geração propaganda da Fanta”, onde um mundo paradisiacamente feliz se apresenta em meio a explosões de confetes, todos muito coloridos, onde não existe o feio, não se chora, não se fede, não se sangra – por evidente, também não se morre.

É realmente incrível, que numa realidade inconteste onde todos morrem (embora eu não possa provar isso pela lógica formal), ainda se tenha a estranha sensação de que falar sobre morte seja algo “desagradável”.

Levar o filho mais novo para o velório do tio pode ser visto como ponto de crítica moral: “crianças não devem ver isso”, pois se acredita que chocar-se com o inevitável é ruim, melhor é torná-lo indiferente.

Numa metáfora muito valiosa, a morte nos parece com uma tatuagem que todos temos na testa. Raramente a vemos como parte de nós, embora saibamos que nos seja inerente, e quando percebemos na testa dos outros somos rápidos em enterrar os seus donos o mais rápido possível – “acho velórios ridículos”, diria o cult intelectual sem se lembrar que muito provavelmente ele será o protagonista de um.

Ainda hoje estimulo freneticamente a abordagem do gênero Fantasia (as originais, não as ceifadeiras poéticas refilmagens da Disney), pois vislumbro neste estilo literário a abordagem profunda deste quê cada vez mais escamoteado de nossa existência – pobre Atreyu, morreu de tristeza, e que descrição maravilhosa nos traz Michael Ende.

É consenso (dentro do que se pode considerar consensual em Filosofia) em uma vasta literatura filosófica, que é exatamente na consciência de sua finitude que surge a grande questão que carregará o homem por toda vivência. Sobre algo tão sine qua non, não há outra abordagem senão que formulá-la pelo “Por que”.

Enevoando a percepção da finitude, a fórmula questionadora do ser não se torna mais o “Por que”, mas o “Como” – e isso parece ocorrer obsessivamente em qualquer questão que ofenda com elementos não captados pela razão científica conservadora. Houve um problema, não se importe, atropele-o com um “Como”.

“Por que” não é pragmático, “Por que” não é rápido, e principalmente, “Por que” cansa e é chato. Já o “Como” é prático e direto, além de dar respostas muito mais precisas para questões muito mais superficiais. Não me importa saber “Por que ter o maior título me fará feliz” mas “Como ter o melhor título que me fará feliz”.

O grande problema do “Como” é que ele não resolve a questão da morte (e nem muitas outras fundamentais que espero que você, Leitor, faça-as quanto quiser para testar a premissa), pois mesmo que se conheça todas as bilhões de formas de se morrer, não poderemos escapar de ser parte deste “estranho destino sobre a Terra” – sim, é a última vez que digo, só pra reforçar antes da próxima propaganda da Fanta: nós morreremos, indiferente ao quanto escondamos isso.

Concluindo esta singela pílula de reflexão, volto-me para dentro da sala de aula e para o rosto juvenil mas apreciável de minha colega. Lembro-me, que com um olhar de quem pretende falar algo muito profundo, lhe disse: “Você está estudando pra virar uma historiadora! Nem coveiro mexe mais com gente morta do que nós!”. Não acho que tenha sido profundo, mas não creio ter errado nesta.

Texto escrito por Cristiano Rodrigues de Souza – Bacharel em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e aluno do curso de Mestrado em História pela mesma Instituição.