Se a fosfoetanolamina sintética “cura” ou “não cura” o câncer é a pergunta do momento. Mas para debater esse tema, voltemos às primeiras pesquisas científicas feitas com outras moléculas que supostamente eliminariam o câncer.

Por exemplo, estudos em laboratório comprovaram que a administração de interleucina-2 (IL-2) funciona muito bem em modelos de câncer em camundongos; esses animais injetados com células tumorais e tratados com IL-2 tiveram regressão tumoral e inibição de metástases.

Entretanto, em estudos clínicos, a IL-2 em pessoas com câncer foi altamente tóxica e com resposta em apenas 16%. Ou seja, o paciente tratado ou ficava mais enfermo por causa da toxicidade da IL-2, ou tinha apenas 16% de chances de responder ao tratamento (os demais 84% do pacientes simplesmente não recebiam benefício algum).

É irônico que em alguns artigos de pesquisa pré-clínicas envolvendo a IL-2, os títulos dos trabalhos eram “Cura do melanoma em camundongos tratados com IL-2” e “Cura das metástases…”.

Mas nós aprendemos (ou pelo menos a comunidade científica internacional).

Nas mais recentes pesquisas pré-clínicas com novas drogas, como inibidores de BRAF mutante, anticorpos anti-CTLA-4, anticorpos anti-PD1 entre várias outras, o otimismo foi moderado.

Os experimentos tiveram controles mais rigorosos.

Nos artigos científicos com esses tratamentos, os autores procuraram ser realistas e cuidadosos ao relatarem e discutirem os resultados.

Hoje em dia, raramente ou nunca se vê um artigo científico usando termos como “cura do câncer”.

Em outras palavras, a pesquisa sobre o câncer virou assunto de “gente grande”.

E qual o resultado dessa visão crítica para o desenvolvimento de novas terapias?

Muito simples e direto, melhores tratamentos foram e estão sendo desenvolvidos (o aumento no rigor durante a fase pré-clínica foi essencial).

Eu considero um grande exemplo o que se obteve nos Estados Unidos após décadas de extensos estudos com imunoterapias, como publicado recentemente em uma prestigiada revista que a combinação das terapias anti-CTLA-4 com anti-PD1 gera uma taxa de resposta de aproximadamente 60%.

Isso nunca foi obtido antes na história do câncer, particularmente para melanoma!

Agora voltemos à questão da fosfoetanolamina sintética.

Por enquanto, não há estudos clínicos com essa droga. Existem apenas relatos pessoais da eficácia, mas nunca foi testada com os controles apropriados.

Portanto, não existem resultados que sugiram a sua real eficácia para o tratamento de pessoas com câncer.

Quando a imprensa brasileira ou outro alguém qualquer divulga que “grupo brasileiro de pesquisa pode ter descoberto a cura do câncer”, é criada uma falsa imagem de imaturidade na ciência médica brasileira.

No que diz respeito à pesquisa pré-clínica (a que usa cultivo de células e tumores em camundongos) com a fosfoetanolamina sintética, como um pesquisador extremamente crítico que sou, eu considero que os efeitos foram apenas modestos.

Por exemplo: em um trabalho recente, o grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) relatou que em doses altíssimas (concentrações em mMolar) a fosfoetanolamina sintética reduziu a viabilidade de células leucêmicas in vitro.

Quando uma molécula precisa de concentrações in vitro muito altas para produzir efeitos, pode-se supor que ou ela não tem como alvo um importante processo biológico ou sua ação não é seletiva, já que células em cultura são muito sensíveis (a ação sobre células saudáveis precisa de mais experimentos).

Por outro lado, os experimentos em camundongos sugerem que há um potencial antitumoral; eu acredito que esses resultados são de algum interesse. Entretanto, faltaram detalhes nos experimentos para que os resultados com a fosfoetanolamina sintética sejam mais confiáveis.

Tenho duas críticas a esse respeito.

A primeira é que nos experimentos em vários artigos publicados (pelo menos os que eu lí), o grupo controle utilizado são camundongos não tratados. Dessa maneira fica impossível determinar se os efeitos antitumorais são devidos à fosfoetanolamina sintética em si, ou pelo solvente utilizado.

Isso é muito importante porque algumas soluções podem conter contaminações químicas que interferem com a carga tumoral, como é o caso da endotoxina presente em muitas soluções utilizadas em laboratório.

A segunda crítica é sobre a falta de experimentos para “provas de conceito”, principalmente in vivo.

Por exemplo, é importante demonstrar que o potencial terapêutico é perdido quando tumores resistentes são tratados com a droga. Para isso é necessário compreender o mecanismo de ação da droga e desenvolver uma linhagem celular tumoral capaz de “driblar” esse mecanismo.

Com base nesses fatos, nós devemos tomar cuidado ao concluir sobre os efeitos da fosfoetanolamina sintética.

Não que eu esteja criticando os autores dessa pesquisa; também não duvido da veracidade dos dados (embora me preocupo com potenciais ‘conflitos de interesse’).

Na verdade, eu parabenizo os autores pela persistência, pois sei muito bem como é difícil fazer pesquisa no Brasil. Mas agora, com a possibilidade de que 10 milhões de reais sejam investidos pelo governo para estudar essa droga, eu me pergunto se é um bom investimento.

Eu acredito que o pesquisador brasileiro em geral tem potencial para fazer melhor uso desse dinheiro; devem haver projetos mais interessantes que esse.

Ou vocês todos, que pagam impostos e pagarão por essa pesquisa, concordam que o trabalho com a fosfoetanolamina sintética merece tanto investimento?

Para concluir, este é um momento preocupante para a ciência médica brasileira.

Não demora (se já não é o caso) para que a fosfoetanolamina sintética atravesse nossas fronteiras e passe também a ser discutida internacionalmente.

Será que os autores do trabalho esperavam tão grande repercussão?

Ou pior, será que os resultados com essa droga são sólidos e robustos o suficiente para se manterem inabaláveis?

Eu imagino que neste momento existem vários laboratórios pelo mundo tentando reproduzir os experimentos com a fosfoetanolamina sintética.

Embora esta seguinte situação seja improvável, mas imaginem se algum laboratório de grande prestígio internacional relatar com todas as provas que a fosfoetanolamina sintética não possui efeitos antitumorais. Vários artigos brasileiros seriam retratados e a reputação da pesquisa médica brasileira seria prejudicada!

É meus amigos, não pensem que publicou o artigo, pronto, fim da história (defende o doutorado e some); há consequências…