Ciência e fé. A maioria dos meus amigos cientistas ou pertencentes a uma tradição religiosa acreditam que essas duas palavras não podem coexistir na mesma frase. De forma genérica existe a ideia que um cientista não pode possuir uma fé religiosa ou um “crente” (latu sensu e não naquele sentido pejorativo) não pode ser progressista, não tem nada a acrescentar a ciência, etc.. E não se discute.

Pessoalmente, acho que tudo se discute. Futebol, religião, ciência e qualquer tema polêmico. Agora, entenda que diálogo e discussão são coisas distintas.

Que coisa mais chata é o mundo quando opiniões, tradições ou comportamentos se tornam verdades absolutas, inquestionáveis… Acho que não discutimos por que não sabemos ouvir, refletir e responder seguindo a regra de ouro (“fazer ao outro aquilo que gostaríamos que fosse feito a nós mesmos”).

Por isso mesmo, iniciativas que discutem promovem a quebra dessas barreiras são necessárias, urgentes e desconhecem fronteira geográfica.

Aliás, se fronteiras geográficas pouco significam num mundo globalizado, menos ainda quando tratamos de temas relacionados ao meio ambiente, sobretudo considerando o cenário das mudanças climáticas e o tema de justiça ambiental.

Há alguns dias fui convidada a participar de um “Tech-in” (que eu traduzo livremente por estudo aprofundado) inter-religioso para discutir as mudanças climáticas. O evento ocorreu nos Estados Unidos e foi organizado pelo Religions for peace.

Duas questões gerais procuraram guiar o encontro: “por que o esforço coletivo das diversas religiões é necessário para enfrentar as mudanças climáticas?” e “por que a mudança climática é um assunto relacionado à paz”. Num esforço coletivo e sem saber o que esperar desse encontro, jovens cientistas (pertencentes a alguma tradição de fá ou não), renomados pensadores, membros de ONGs, ativistas, donos de empresas ambientais e lideres religiosos (judeus, cristãos de diferentes denominações, sikh, muçulmanos e zoroastrianos) dialogaram livre, animada e “civilizadamente” como deveria ser sempre.

O que a primeira vista parece impossível se tornou uma experiência de vida. O que acontece quando toda essa gama de gente completamente diferente, culturalmente falando, senta para conversar sobre um assunto que toca a todos? A gente se entende!!!!

Queria compartilhar com vocês quatro importantes lições que aprendi.

1. Um cientista pode seguir uma tradição religiosa e isso pode ser bom
Durante minha formação, conheci muitos cientistas que professam abertamente sua crença religiosa. Nem sempre foi uma boa experiência, como para maioria dos meus colegas.

Mas eu não vou esquecer o que disse o Dr. Tarujit Butalia (professor da Universidade de Ohio) tão cedo. Ele, como Sikh, leva sua fé de forma pouco discreta na cabeça. Ou seja, não pode negar ou disfarçar aquilo que vive “fora” da academia… Isso traz para ele uma obrigação de seguir os preceitos da sua fé, agindo em consonância com a moral que abraçou na vida pessoal. O que inclui  não só agir melhor como ser humano, mas dirigir seus esforços de pesquisa em favor do um bem comum e atuar para promover o diálogo com outras tradições culturais e religiosas. Ao escrever essas palavras, percebo inclusive, que essas são quase as mesmas motivações expostas pelo Dr. Valentine Nzengung (professor da Universidade de Ohio), católico romano. As técnicas premiadas que foram desenvolvidas por ele, foram pensadas para promover também a justiça social e ambiental.

Coincidência que cientistas que seguem uma tradição religiosa tão distinta tenham a mesma motivação?! Não creio. Prefiro pensar que a moral religiosa (se a possuímos) deveria nos levar a repensar nossas atitudes como cientistas, no sentido da coerência entre o que cremos e vivemos, incluindo as pesquisas que conduzimos e o relacionamentos na academia. E, nossa carreira como cientistas nos deveria levar a abraçar o benefício da dúvida e, assim, aprofundarmos ainda mais nos mistérios que cada religião ensina, no diálogo e incentivo ao respeito, à diferença. Longe de sinônimo de perfeição, esses cientistas me apontam um caminho intermédio entre convicção e ação.

2. Todas as tradições religiosas, possuem em seus ensinamentos a indissociabilidade entre o homem e meio ambiente que o circunda. E isso é fundamental quando se fala de questões globais como as mudanças climáticas
O que diz cada ensinamento religioso sobre o posicionamento e conduta de seus seguidores diante do contexto (presente e futuro) relacionado às mudanças climáticas vai ser diferente. Por exemplo, diante desse tema, talvez para os judeus o que mais chame a atenção seja a justiça social, para religiões integralistas como o zoroastrismo, a indissociabilidade entre o natureza e o sagrado, para os cristãos a responsabilidade sobre a criação e o conceito de fraternidade… etc.

 Tão importante quanto saber o que o “outro” valoriza quando pensamos em dialogar é, que por diferentes caminhos, podemos atingir um objetivo comum.

Então, por que perder tempo em convencer qual o melhor caminho, se cada caminho tem sua beleza e razão? Assim, se os lideres religiosos, cada um à sua maneira, auxiliarem no processo de conscientização e responsabilidade coletiva nas questões ambientais, quão longe poderemos ir?!

3. Para transformar a realidade precisamos apenas ser humanos.
Somos, antes de tudo, humanos pelo que me consta. Então, professar uma fé ou não, na verdade não deveria fazer muita diferença. Ou, se fizer, que seja para melhor

Talvez a melhor síntese para esse aprendizado eu tenha ouvido tempos atrás de um monge budista numa palestra TEDx “À medida que nós temos uma motivação grandiosa, não importa o tamanho da obra. Ela vai inspirar e transformar a realidade onde estamos e irá muito além. Nós não precisamos de nenhum misticismo, heróis ou heroínas para transformar a realidade, precisamos de seres realmente humanos” (Monge Koho).

Engana-se alguém que pense que haviam naquele congresso pessoas alienadas por sua religião ou apenas pessoas ligadas a uma denominação específica. Eu vi na verdade seres humanos dispostos a cruzar uma ponte para conhecer o outro mais a fundo, aprender a respeitá-lo na diferença e construir estratégias coletivas e particulares. Eu vi o poder da capacidade de escuta. Vivenciei como escolhas certamente influenciam o relacionamento da nossa espécie com o Planeta. Eu vi pessoas compartilhando as mais diferentes experiências que se pode imaginar, pequenas e grandiosas. Experiências inspiradoras e transformadoras de realidade local e global.

4. “Não podemos falar de um cenário ruim sem falar em esperança”
As diferenças de crença são frequentemente utilizadas para instigar e maliciosamente disseminar conflitos, violência, divergência e incompreensão. Conflitos e divergências sociais são realidades inevitáveis, mas violência e falta de diálogo não. Existem muitas maneiras para lidar com as diferenças. Caminho que frenquentemente deve começar em cada um de nós, conscientes de nossas crenças, alinhando nossa moral e conduta, sabendo portanto do potencial da nossa vida para transformar o mundo (independente da escala).

Eu conheci seres humanos incríveis. Cientistas de várias denominações religiosas, sem denominação religiosa, convivendo e discutindo como podemos promover a justiça ambiental. Isso renova minha esperança na capacidade que temos como cientistas de empoderar, educar e atuar no diálogo entre as distintas partes da nossa sociedade.

Disposição ao diálogo e alinhamento entre moral e conduta, afinal me parece “o” caminho para tudo nessa vida. Incluindo meu agir como cientista.

O que acontece quando ciência, fé se encontram para discutir as mudanças climáticas? A realização de metas aparentemente impossíveis parecem mais reais, por que traz para o indivíduo a empatia e para a coletividade a ação. Começando pelo encontro e cruzamento dessas pontes que nos distanciam quando precisamos agir pra ontem coletivamente.