Há dois pecados humanos capitais, dos quais todos os outros decorrem:
a impaciência e a preguiça.
Franz Kafka, Diário íntimo

Nós que trabalhamos com o ensino de línguas estrangeiras sabemos uma coisa importante: porque uma pessoa é falante nativo de uma determinada língua, não quer dizer que esta pessoa saiba ensinar aquela língua a outros que não a falam, ou mesmo que entendam os mecanismos da língua. Por exemplo: quantos falantes do português poderiam explicar por que às vezes usamos o pretérito e às vezes o imperfeito? Somente aqueles que estudaram o idioma parara explicá-lo, saberão as diferenças e os usos destes dois tempos verbais, “de fora”. para alguém que está tentando aprender como e quando usá-los. Sabemos, ademais, que somente saber o porquê de algo não nos torna bons professores daquela língua. O bom professor de língua estrangeira tem empatia com seus alunos, e re-visita o sentimento de fragilidade de seu aluno tentando de vez em quando aprender outra língua estrangeira.

A mesma coisa é válida para professores de outra área. Porque uma pessoa é, digamos, um bom arquiteto, não quer dizer que esta pessoa tenha condições de ser um bom professor de arquitetura. Uma coisa é o saber fazer, e outra, muito mais fina, é saber ensinar. E saber ensinar é ao mesmo tempo uma arte e uma ciência. Como arte, alguns já nascem predispostos a isto, mas como ciência, deve ser aprendida, estudada. E, como todas as profissões, o magistério requer constante aperfeiçoamento. Isto é, o professor de qualquer assunto que passa muito tempo sem questionar e sem interrogar sua prática pedagógica “de fora”, como se fosse desde o ponto de vista do aluno, certamente vai virar um fóssil ensinante. Todos nós nos lembramos daquele professor que dava (ou ainda dá, infelizmente) suas aulas usando cadernos encardidos, com “verdades” adquiridas no tempo em que ele/ela ainda estava fazendo sua própria preparação profissional. Aquele professor (ou este), é um mero boneco equipado com uma cordinha que é puxada quando ele entra na sala de aula, e “recita” (ou regurgita) o que tem dentro do disquinho interior.

Se você é um destes professores, sugiro que faça o seguinte exercício: dê os seus cadernos e seus dados antigos a um aluno, e sente-se com os demais estudantes um dia em sala de aula, e observe enquanto o aluno imita a sua atitude diante da turma. Viu que ridículo? Viu que incompetente? Viu que vergonhoso?

Agora, jogue fora aquele caderno e energize-se outra vez pela sua disciplina. Apaixone-se por ela como se fosse a primeira vez. Leia coisas diferentes sobre ela. Tome uma posição contrária à que sempre manteve, e faça um esforço para ver onde existem pontos positivos, mesmo que difiram dos seus. Ponha-se na posição do seu aluno, que está tentando entrar na área, aprender um ofício, dar uma contribuição à sociedade, ganhar a vida com a profissão. Se você não tem dinheiro ou tempo para participar de congressos, convide colegas de seu departamento para um grupo de discussão um dia da semana, ou um dia por mês, ou um dia por semestre. Convide seus alunos para discussões fora da sala de aula. Re-examine suas verdades.

Ou então continue na mesma rotina, na mesma modorra. Seja ignorante. Seja ridículo. E faça um favor a todos: saia da profissão o mais rápido possível. Ensinar é pra quem tem garra. Os molóides, acomodados, que busquem outra profissão onde podem causar menos danos. Não, ensinar não é pra qualquer um. Ser professor requer dons de comunicação, e de generosidade, e requer postura intelectual de auto-crítica, de honestidade, de vontade de continuar aprendendo. Se você não preenche estes requisitos, e não quer ser lembrado por gerações de estudantes como um imbecil, um papa-cérebro, saia. Recolha-se à sua insignificância. Pare de sujar a imagem da profissão.

Se os danos que podem ser causados pelo professor são muitos, os danos causados pelo orientador são ainda piores porque o orientador está posicionado, atualmente, de maneira ainda mais crucial que a que tinha antes, porque agora, não só os mais intelectualmente maduros e enrijecidos — estudantes de mestrado e doutorado — têm que lidar com orientadores, mas desde a faculdade já existe esta figura na vida do aluno. Quando eu me formei na UEM em 1975, não tínhamos que fazer uma monografia. Terminávamos as matérias com provas, trabalhos, apresentações, e, no caso de cursos destinados ao magistério, fazíamos a nossa prática de ensino. A ideia de exigir-se monografia ou projeto final para todas as faculdades provavelmente teve o louvável intuito de adicionar um elemento de pesquisa a todas as disciplinas, e não restringir o aluno a mera repetição de assuntos discutidos em aula. Por outro lado, colocou nas mãos de muitos professores universitários de dúbias habilidades e ainda menor honestidade a função de orientar os formandos em suas monografias e projetos. Ah, a viagem de poder em que este sistema deve ter catapultado muitos incompetentes! Ah, o ego crescendo, crescendo, ao ver que o aluno está ali, em suas mãos, pedindo, implorando, e o orientador mesquinho se negando, se cegando.

Ser orientador requer do professor muito mais que a mera recitação de verdades. Mas qual é exatamente a função do orientador? Esta pergunta, cuja resposta pode parecer óbvia – orientar – pode nos levar a uma indagação da função do próprio professor da graduação, além dos que orientam a nível de mestrado e doutorado.

A primeira função é orientar. Não guiar ou teleguiar, porque, de fato, os alunos que estão na universidade ou além já são eleitores, portadores de carteira de motorista (a maioria, pelo menos), e adultos. Mas isto não quer dizer que estes alunos já conheçam todas as manhas da profissão para a qual estão se preparando, ou os macetes dos respectivos departamentos acadêmicos junto aos quais estão tentando conseguir graduar-se. O orientador se reúne com seu orientando, explica o processo dos papéis, dos requisitos, da burocracia. Sem ter que necessariamente estar a favor da papelada, o orientador mostra ao orientado o caminho das pedras pela boca da cachoeira.

A segunda função do orientador é animar. Todos os alunos, não importa o quanto entrem na universidade cheios de esperanças e entusiasmo, algum dia perdem um pouco desta empolgação. É normal. A uma certa altura do curso — de graduação ou mesmo pós-graduação — o aluno se depara com o mercado de trabalho, com os percalços da profissão, as angústias existenciais. É isto mesmo o que eu quero? Será que vou ganhar o suficiente? O mercado de trabalho está ruim? E muitos querem saltar fora do barco. Mas o orientador deve estar disponível e ser competente suficiente para mostrar as muitas veredas da profissão ao seu orientando, e a ajudá-lo a ver as possibilidades, as vantagens, e mesmo as desvantagens. Muitos estudantes se perdem neste momento, e levam uma vida de frustração por terem desistido, de não terem terminado algo que começaram.

A terceira função é transmitir entusiasmo pela profissão. Qualquer carreira, levada a sério, é não somente a maneira do estudante ganhar o seu sustento, mas uma maneira excitante de participar do mundo, de contribuir ao diálogo, ao progresso de todos. O orientador que está sempre puxando o aluno pra baixo, lembrando-o do reduzido número de empregos, é como uma toalha molhada jogada em cima de uma vela. Se o professor não tem nenhum amor ou entusiasmo pelo que faz, deve sair da carreira, e ir fazer algo que lhe interesse; caso contrário, vai ser uma força negativa para seus alunos, e muito especialmente para seus orientandos, que estarão ainda mais sob a sua influência.

A quarta função é ser um profissional decente e realmente orientar a monografia, projeto, dissertação, ou tese. Isto não quer dizer que o orientador tenha que saber tudo do assunto que o aluno está trabalhando. Mas o orientador deve estar disponível para ver o que seu aluno pretende trabalhar, documentar e desenvolver o seu trabalho final. O orientador precisa colocar-se no lugar de seu orientando, “usar suas sandálias”, e, como supostamente tem mais experiência que seu orientando, ele deve reconhecer um projeto que vê que não tem futuro, ou que exija mais tempo e mais recursos que o orientando tem a seu dispor para terminar seu curso, e alertar o seu orientando para estes perigos.

O orientador que não assume esta posição, que não faz uma avaliação honesta do projeto/monografia/ dissertação/tese, está deixando que sua preguiça e desonestidade ponham em risco o futuro de outra pessoa. E aquele orientador que, por razões políticas alheias ao projeto coloca empecilhos no caminho de seu orientando, deve fazer uma auto-análise e reconsiderar as razões de estar na profissão. Finalmente, aquele professor que aceita orientar, mas nunca está disponível para encontrar-se com seu orientando, assumindo a posição de “dane-se, eu não ganho suficiente para fazer isto”, deve simplesmente sair da profissão. Certamente haverá outras pessoas com mais tempo, mais conhecimento do material, mais dedicação ao ensino, mais honestidade, que poderão ocupar a posição para maior proveito de todos. Quem assume a posição de orientador com qualquer destas atitudes negativas, está causando grave dano para seus alunos, sua instituição, e para o país. Esta pessoa não é melhor que aquele ladrão que entra nas casas durante a noite, quando estamos dormindo, e leva coisas que trabalhamos para conseguir. Este orientador é um ladrão de futuros.

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Há muitos anos (uns 30), conheci um professor que queria fazer o doutorado em uma grande universidade em São Paulo, em um departamento de muito prestígio, que além de tudo era aureolado com muito dinheiro para o laboratório milionário. Apesar das suas credenciais, da sua pesquisa já avançada, de todos os requisitos preenchidos, o departamento colocava obstáculos à sua pesquisa final e à conclusão do curso. E nenhum professor queria orientá-lo. Ele só conseguiu um orientador depois de ter uma entrevista com o diretor do programa e jurar que não queria um trabalho naquela universidade depois que terminasse o doutorado. Teve que apresentar documentos da sua própria universidade indicando a sua situação, e mais as razões pelas quais não queria trabalhar ou morar em São Paulo em caráter permanente. Este professor me contou esta história num misto de raiva e decepção, e disse que esta atitude marcava claramente a necessidade de uma ruptura completa com aquele departamento no futuro. Ele simplesmente não poderia respeitar professores que eram tão mesquinhos a ponto de sacrificar tudo o que ele tinha feito, e todos os anos em que ele tinha trabalhado para obter o doutorado, por mera inveja e falta de confiança neles mesmos.

Recentemente, testemunhei o caso de uma estudante de arquitetura que passou todo o semestre procurando o orientador para mostrar-lhe seu projeto e pedir orientação, mas nunca conseguiu encontrá-lo. Teve que fazer o projeto sozinha. Na hora da defesa, o orientador apareceu feito um dragão, e destruiu o projeto da aluna na frente da banca e dos convidados para a defesa. O projeto não tinha alguns passos que são requeridos pelo departamento. O projeto, obviamente, não era perfeito, devido à falta de orientação do orientador que é pago para isto. Resultado: o projeto foi rejeitado, a aluna reprovada. Depois de recolher os pedaços do seu ego do chão, esta aluna terá que pagar mais um semestre de mensalidades, e fazer outro projeto, completamente novo. Desta vez, conseguiu outro orientador, um que é menos auto-importante, que entende que tem um dever para com seus orientandos, e que lhe assegurou que vai acompanhá-la por todo o percurso da pesquisa e da execução do projeto. O que é mais incompreensível, neste caso, é que esta aluna já exerce a profissão e portanto, o projeto é simplesmente uma questão pro-forma para que ela consiga o título e comece a receber um salário de profissional, e não de estagiária, no escritório em que trabalha.

Nestes dois casos, temos, primeiro, a questão da defesa do seu “quintal”. O tal programa na poderosa universidade em São Paulo reconheceu excelência e portanto teve medo que o professor oriundo do “sertão” fosse colocar areia no chinelo de seus monstros sagrados. Qual a maneira de impedir tal coisa? Para aquele augusto departamento foi de certificar-se que o candidato não iria ficar nem tentar entrar para o sacrossanto departamento.

No segundo caso, temos o exemplo da mais crassa incompetência, falta de profissionalismo, e falta de vergonha. Este orientador, seguramente uma pessoa sem a menor preparação pedagógica, decidiu ausentar-se do labor da aluna, para poder depois atacá-la em público e destruir seu projeto, assim redimindo-se aos seus próprios olhos, dos defeitos que o projeto pudesse ter. Também é bem possível que este orientador, ao ver o talento da sua aluna, sentiu ciúme da sua carreira, e quis ensinar-lhe uma lição, ao sabotar o desenvolvimento de seu projeto.

Infelizmente, o aluno não tem recurso contra o orientador. Ninguém disse que a universidade é uma instituição democrática. Mas a universidade deve manter seus funcionários cientes das suas obrigações para com seus alunos. É inaceitável que o sistema de orientação de estudantes continue sendo mantido ao deus-dará.

Uma maneira de impedir que maus orientadores continuem causando tanto dano e sofrimento — além de perdas quantificáveis de salário para orientandos que não conseguem terminar sua monografia ou projeto — a universidade deve criar um sistema de orientação aos orientadores. Nenhum professor deveria ser admitido como orientador sem ter passado por esta orientação, que seria administrada por um grupo de orientadores bem sucedidos, que se dão ao trabalho de pesquisar e desenvolver técnicas de orientação e acompanhamento de seus estudantes. As expectativas da universidade, assim como as demandas específicas de cada departamentos devem ser colocadas em escrito, para que os orientadores possam retransmiti-las aos seus alunos. Técnicas para uma orientação bem sucedida devem ser discutidas, e novas possibilidades levantadas. Depois de passar pela orientação, os orientadores teriam que prestar contas anuais do trabalho feito, em termos de hora de contato com orientandos, alcance das pesquisas orientadas, tempo de conclusão de projetos dos alunos, e defesa bem sucedida.

Como orientadores e professores são, afinal de contas, seres humanos, e seres humanos funcionam melhor com um sistema de prêmios, o prêmio para o bom orientador, aquele que faz seu trabalho bem e é presença positiva na carreira de seus alunos (trabalho quantificável em termos de aprovação de projeto, empregos conseguidos depois da formatura), seria premiado com promoções e aumentos. Quanto ao professor orientador relapso, este deve ser punido com demoção, ou, no mínimo, que seu nome seja publicado numa lista dos que não terão mais a possibilidade de serem orientadores por falta de competência.

Assim, as coisas vão realmente funcionar, e o orientando ou orientanda não ficará mais à mercê dos humores e hormônios do orientador, ou de suas tendências políticas, ou de sua preguiça, sua impaciência e falta de profissionalismo. Assim, fazer uma monografia, ou dissertação, ou tese, vai ser realmente o melhor da carreira do estudante, o momento em que ele/ela pode aproximar-se do seu professor como alguém que o orienta, no verdadeiro sentido da palavra.

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Texto escrito por por Eva Paulino Bueno*

Fonte: espacoacademico.com.br

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