Essa história tem um começo que é, infelizmente, muito comum: o fim do doutorado sem nenhuma previsão do que fazer depois.

Meu orientador decidiu passar um ano sabático em Cambridge, Reino Unido, e em pouco tempo ficou claro que não daria para eu segui-lo nisso.

O laboratório francês em que eu fiz parte do meu doutorado me queria de volta, mas não tinha dinheiro (ou não queria usar o dinheiro que tinha) para pagar o meu salário, e com a bagunça político-econômica que o Brasil enfrenta, não estava encontrando muitas possibilidades por aqui.

O primeiro baque: a bolsa acaba.

O dinheiro guardado não é muito, aulas não aparecem para serem dadas, a volta para casa dos pais depois de 11 anos fora.

O quarto ainda é seu, praticamente inalterado em uma década (valeu por isso, mãe!), mas a pessoa que agora volta para ele é outra: viu o mundo, pagou contas, teve o coração destruído e espera não ter destruído o de ninguém….

Nem cabelo tem mais.

Aquelas fotos de um menino de cabelos cacheados parecem ser de outra pessoa, outra vida.

Os amigos casaram e tiveram filhos, os primos cresceram quase sem te ver, as crianças mais novas da família não sabem quem você é.

A vida seguiu sem você.

Por sorte, as tias e avós ainda acham que você é uma das crianças que ficou muito tempo sem ir nos almoços de domingo e te tratam como tal.

Você se reconecta com essa vida, mas sabe que ela não é mais sua, não sabe que direção tomar.

Pra que todo o esforço? Do que valeu as viagens, prêmio, dinheiro curto, sacríficos pessoais em prol do doutorado?

A barba cresce. O dinheiro acaba. Você quase não sai do quarto. Há alguma coisa errada, você deveria saber o que é, e como consertar, mas não sabe.

Um dia cansa.

Autopiedade não resolve a situação.

Faz a barba, raspa o cabelo. Refaz o curriculum. Manda para todas as Universidades e escolas da região.

Nada.

Nature Jobs” e “Science Carreers” viram praticamente sua homepage. Depois de algumas semanas aquelas vagas na Arábia Saudita e em Xangai não parecem assim tão fora do que você quer.

Um e-mail é respondido, entrevista marcada, a primeira, a vaga é em Israel. A entrevista não vai bem, volta-se a rotina de procura. Manda-se mais e-mails, alguns “não” são tão educados, já que a maioria nem responde, que você manda mais um e-mail só para agradecer a gentiliza.

Alguns e-mails são respondidos, entrevistas marcadas e desmarcadas. Mas então em uma você ri, fala o que trabalhou, o que espera trabalhar, os dois lados gostam do que ouvem, te oferecem uma vaga e você aceita.

Você sente alguma coisa estranha, mas deve ser imaginação sua, é uma vaga, nos EUA e para trabalhar na sua área. O que pode dar errado?

Começa a correria da mudança, tira outro passaporte, pede visto, vai no consulado uma vez, vai uma segunda, vai uma terceira. Assina papel, assina mais papel e ainda mais papéis existem para serem assinados.

Gasta-se dois mil reais que você não tem, seu irmão te ajuda. Compra passagem, aluga casa, faz conta de quanto é o mínimo necessário para poder comer – não é uma bolsa da FAPESP, o salário só vem no fim do mês e o primeiro é igual os outros, um só, não dois.

O irmão ajuda de novo, a família também (“putz, quanto tempo eu demoro para poder pagar eles?”).

Você muda. Você chega. Tem algo estranho. Como assim não me disseram nada da debandada de doutores do laboratório no ano passado? Uma vaga foi oferecida para a doutoranda, no singular, e ela não vai aceitar porque o trabalho deixou ela depressiva? A chefe teve duas reclamações formais contra ela? Por que ninguém me falou? Eu perguntei antes de assinar o contrato. E que papel é esse que só me foi entregue agora? Como assim ele define meus dias e horários de trabalho, férias, como minha relação deve ser com a chefe e só me foi entregue agora? Aqui? Algo começou muito mal.

Conversa-se com a chefe, ela fica apreensiva, você mais calmo. As semanas passam, o que foi combinado não é cumprido, o que lhe foi prometido na contratação não lhe é entregue. Preconceito, falta de empatia, se espera que você trabalhe longas horas, não gostam que você leia artigos, não gostam que você questione ou sugira. Gostam que você pipete, que obedeça, que produza e produza o que querem, como querem.

Não há espaço para o crescimento na carreira da forma que você esperava. Difícil dormir (“Voltar para o Brasil? Como eu vou pagar minha família?)”, difícil acordar. O trabalho não rende, a cobrança aumenta, algo que não posso aceitar acontece, nova conversa. Você diz que está em dúvida, pouco mais de um mês se passou.

Você procura ajuda, há esperança, a faculdade toma o seu lado, o que te surpreende. A chefe te dá um ultimato, um ultimato educado (talvez pelo histórico e por saber que haverá consequências ruins), mas um ultimato de qualquer forma. Ela não pode ficar com a dúvida, ela quer certeza, ela quer sua resposta e quer sua resposta agora. Você agradece a oportunidade e diz que, já que é assim, vai embora, melhor para todo mundo. Aviso prévio de 15 dias. Como quebrar o contrato com a casa? Dá para arranjar emprego de garçom? Meu visto não permite. Virar ilegal? Mas se sim, como conseguir emprego em um Universidade nos Estados Unidos depois?

A faculdade tem um departamento para questões assim, conheço o doutor que saiu do mesmo laboratório no ano passado, ele me dá conselhos. Dois dias depois, entrevistas, 4 dias depois e eu já tinha um novo lugar, o novo chefe também é imigrante, irlandês.

Novo lugar. No segundo dia, ocorrem reuniões. Você consegue participar e ajudar a resolver problemas que eles estavam tendo faz tempo. Conversa, dá risada, acha aonde tem café. Começa a fazer amizade. Os projetos que você está te dão a chance de crescer da forma que você quer.

Um dia, você volta cansado para casa, mas percebe que estava cantado pelo caminho, fazia tempo que isso não acontecia. A vida parece ter voltado para os trilhos, você espera que demore para que ela saia deles de novo.

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*Willian Abraham da Silveira, doutor pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, pós-doutorado na Universidade de Medicina da Carolina do Sul – EUA