É ótimo que exista discussão sobre a regulamentação da profissão de cientista, mas é preocupante perceber o medo criado por falácias acerca do “novo” sistema proposto. Os cenários previstos já são a realidade dos pós-graduandos no Brasil, independentemente desta regulamentação ocorrer ou não. A pergunta que fica não é “a quem interessa essa mudança“, e sim “a quem não interessa“.

Há uma insegurança por parte daqueles que temem perder “regalias” e acham que o sistema hoje é perfeito e só precisa de alguns  “ajustes” ou, como a ANPG clama, “basta” institucionalizar os deveres (Sim, você deve ler o texto deles pois também há questionamentos relevantes!).

Deve-se sim, questionar muito a proposta. Mas, não é isso que nós cientistas fazemos? Questionamos, estudamos, propomos novos modelos que serão julgados com rigor e sempre sustentamos nosso ponto de vista com fatos e argumentos estruturados. Não achismos.

Não espero que em uma questão tão séria, esqueçamos desses princípios básicos.

O modo como pesquisadores são tratados no Brasil é precário. O nível de respeito é precário. E hoje que vivo em um sistema de pós-graduação/trabalho eu vejo com mais clareza o quanto precisa ser mudado. Em alguns lugares, pós-graduando é respeitado sim, como profissional que é.

Com isso, continuo a discussão em uma série de textos, considerando a minha realidade para ilustrar e esclarecer certos pontos. E a discussão deve sim ser estimulada! Os pontos que escolhi para começar são:

1 – A regulamentação pode trazer incertezas sobre a conclusão do curso.
Conversei com meu orientador na Holanda e a resposta foi a seguinte: o seu contrato de trabalho não tem NADA a ver com você obter um título de doutor. Mas meu doutorado não é trabalho? Há outra confusão aqui. Como muito já dito, o título é obtido mediante mérito. Eu afirmo com segurança: pós-graduando em NENHUM lugar do mundo tem garantia que será doutor. Por quê? Porque não é assim que funciona! Isso significa que se pode chegar ao final do prazo, o contrato acabar – ou sua bolsa – e você não conseguir defender. E isso é assim no Brasil hoje!

Basicamente o contrato de trabalho rege os seus direitos amparados pela lei. O meu doutorado é administrado pela faculdade, que verifica o cumprimento dos requisitos para defesa. São instituições separadas mas que atuam em sintonia! Alguma semelhança com CNpQ/CAPES, FAPEXX e seu departamento?

2 – Virando trabalhador, vou ter que obedecer tudo que meu “chefe” mandar.
A resposta que tive foi a seguinte:  na verdade, com o contrato, aí sim você não precisa obedecer. Os limites são estabelecidos. Se meu orientador me pede para dar “aquela aulinha na graduação” e eu simplesmente respondo: “Não”. Se ele me pede para trabalhar em um projeto “extra”, cabe a mim aceitar.  Mas é claro que eu tenho obrigação de trabalhar no que me propus a fazer da melhor forma possível.

3 – Profissionalizar acaba com a liberdade acadêmica.
Muitos comentários nesse sentido soam como se todos nós fossemos completamente livres para fazermos o que quisermos na pós. Mas e como é hoje? Você pesquisa “o que você quer” pois se juntou a um orientador com conhecimento na área ou que aceitou a sua ideia. A partir daí, você tem um plano de trabalho a ser assinado – que resultará numa tese. E cabe a ambas as partes cumprirem!

Faz parte da academia reuniões frequentes, discussões e questionamentos à qualidade do seu trabalho. Cabe a você, como cientista, argumentar e prover as bases que sustentam a sua linha de pensamento. Cabe ao seu orientador/chefe o papel de avaliá-lo constantemente para garantir que a defesa de tese aconteça com sucesso. É uma parceria! E não uma subordinação. Isso um contrato garante. Onde está a linha que garante isso no seu termo de compromisso?

4 – Se eu não obedecer, serei despedido!
Contrato! Ao assinar o contrato sou empregado da faculdade. Há o período probatório de 12 meses com extensão para quatro anos e, ainda, posso renegociar 6 meses extra. Quatro anos e meio no total. Se houver incompatibilidade nesses 12 meses, isso resguarda a faculdade. Eu sou avaliado por um comitê e, inclusive avalio as habilidades de gerenciamento do meu chefe. Há um compromisso com a eficiência! Sendo aprovado, eu não posso ser demitido. Isso significa que, respeitando as regras da pós-graduação da faculdade e agindo profissionalmente, não há risco de “minha bolsa não cair” ou a agência X não renovar.

5 – O que garante então que ainda serão contratados doutorandos?
Eu gostaria de saber qual laboratório tem total autonomia sobre o dinheiro que recebe de uma agência de fomento. Hoje você passa semanas escrevendo projeto, envia para alguma agência, assina o termo de submissão suprema de compromisso e aí sim começa a receber depois de trabalhar de graça. Se o seu laboratório tem tanta autonomia assim, por que não liberariam a bolsa logo?

Os laboratórios aqui, ao receberem verbas de pesquisa têm fatias destinadas à contratação de doutorandos. Há diversos sites de oferta de trabalho vinculados à programas de pós-graduação e, o grupo de pesquisa recebe uma bonificação/restituição para cada doutorado defendido com sucesso. É de interesse de todos que haja profissionalismo! Claro que cabe aqui o compromisso do país com a educação. As agências de fomento tem verba para doutorandos e há política de aplicação. Nada impede de isso continuar.

6 – As contratações serão sem critério e doutorado será por “QI”.
Sabendo que o título é obtido mediante avaliação externa e defesa da tese, pode sim haver mudanças na forma de contratação. Isso alteraria a dinâmica dos grupos de pesquisa na medida que, caso exista verba extra – resultado de uma parceria com outro laboratório, empresa ou programa do governo –  a contratação seria menos burocrática. Isso abre a possibilidade de contratar sem critério porém todo grupo presta contas. Contratar alguém ineficiente é prejudicial para o próprio grupo. É de interesse de todos que haja compromisso com a pesquisa. Formar mais doutores é de interesse da universidade.

No atual sistema de pós-graduação os alunos aprovados são aceitos em um programa. Por que não agora assinar um contrato de trabalho com a agência/orientador? Se a mudança fosse somente essa, já seria um grande passo.

A discussào porém neo se limita a doutorados. É comum a figura de pesquisadores doutores ou que não almejam tal título. Há casos que é necessário um profissional capacitado e já formado. Atualmente, essa figura seria o “pos-doc”. Entretanto, a limitação imposta pela dependência das agências de fomento engessa o sistema. Afinal, você trabalharia meses sem receber nada na esperança de uma bolsa incerta?

Note que no modelo atual, você nunca trabalhou um dia sequer da sua vida!

Como você já percebeu, a discussão só começou e vai continuar! Eu vou abordar outros tópicos e gostaria de receber por e-mail os questionamentos sobre o sistema. Eu me proponho a conversar novamente com meu orientador/chefe e responder todas as dúvidas. E, dessa forma, contribuir com experiências e menos “achismos” para a discussão. Não precisamos “copiar e colar” o sistema holandês no Brasil mas é uma fonte de informação valiosa, como um paper.