Vivemos na Cucolândia. Descobri isso alguns meses atrás, quando vi que os comentadores de Nietzsche mais badalados do momento eram Faustão e Gugu.
Além do bem e do mal que tal curiosa situação possa trazer (perdoe-me o Leitor pelo trocadilho barato), isso corrobora com a hipótese perspectivista de que enquanto o discurso científico não passar por uma reforma estrutural, enquanto todos nós, de graduando a orientador (ou se preferir, de mamando a caducando, respectivamente) não repensarmos a recepção do discurso científico, nossos programas da tarde de domingo, revistas de fofoca e realities shows serão mais relevantes na vida prática que artigos, monografias, dissertações e teses empoeirando-se nas prateleiras de nossas bibliotecas.
Uma pedra no sapato para qualquer um que já se aventurou no universo da escrita científica (especialmente creio eu, na área das Ciências Humanas), é fazer com que o outro o entenda. Não estamos aqui falando do seu orientador ou da banca examinadora, estamos falando do picolezeiro, do dono da vendinha, do “tio da xerox”, dos nossos irmãos, do colega de outro curso.
Há uma espetacular representação de Clio, filha de Zeus com Minemósine e musa da História, criada por Carlo Franconi em 1819, que gostaria de evocar para utilizarmos como analogia de nossa condição enquanto seres que têm que escrever agradando a gregos e troianos, ou melhor, “Patrícios e Plebeus”. Franconi representou Clio em uma carruagem alada, que expressa a passagem do tempo, enquanto registra-o em um livro. Certamente, a visão da obra é bem superior à descrição ordinária que fiz acima. “Google-a” Leitor, e aprecie-a o quanto quiser. Eu o espero no próximo parágrafo com uma caneca de café…
Então, gostaria que percebêssemos de onde Clio tece a História – de fora do mundo. Clio não é humana, ela possui outra “natureza”, e passa o infinito tempo que a mesma tem escrevendo o tempo finito daqueles outros.
O corolário desta dicotomia essencial dos seres é exposto em sua ponta-de-lança desastrosa quando respondemos a pergunta: “para quem escrevemos?”. A resposta dessa pergunta é muito dolorida, pois escancara nossos defeitos.
Escrevemos para nossos iguais, para os neófitos de nossa seita. Produzimos saber para que nossos pares, arrogantemente entendidos como Patrícios (como nós mesmos) possam entender o que a Plebe não entenderia em mil anos – “a culpa é deles…”, ainda ouvimos e por vezes pensamos, “…porque plebeus são burros”.
Eventos acadêmicos vários nos mostram que uma enorme quantidade de produção científica no Brasil – esta em franco e desqualificado crescimento é bom que se reconheça -, volta-se fundamentalmente para a masturbação intelectual recíproca de seres supostamente desconectados com o mundo extra-academia.
Eu escrevo para que você leia hoje num Congresso, amanhã você escreve para que eu o leia. Nós debatemos, enriquecemos nossos Lattes, e gozamos todos juntos no mar da futilidade.
Sim, pois fúteis somos nós, não o picolezeiro – sentirão mais falta do picolezeiro atrasado na manhã seguinte à nossa Comunicação do que dos Anais em que consta o artigo apresentado, pois o picolé refresca a minha tarde, e o único ser que sentirá dolorosamente a falta dos Anais será a traça que o esperava para devorá-lo.
Dura realidade, doída, ver nossas criações queridas, filhas imperfeitas mas amadas, terem esse fim. Como todo viciado que se queira curar, temos que percorrer uma longa caminhada que começa com o reconhecimento do problema.
Isto é esperançoso, no sentido de que muitos já o estão percorrendo – até onde minhas leituras assumidamente menos extensas do que eu desejo me deixam afirmar, na Filosofia, na Linguística, na Antropologia e alguns teóricos da História e da Psicanálise.
Por outro lado, há ainda os que não querem ser ajudados. Óbvio que podemos mandar às favas o picolezeiro: “Idiotas, jamais entenderão Nietzsche pelo Faustão. Plebeus, tsc”. Para que tenhamos uma carreira acadêmica bem sucedida, não carece preocuparmos-nos com Plebeus, somente com nossos pares.
Afinal, serão estes, “os nossos”, quem nos julgarão na banca do concurso para Docente Universitário num futuro próximo. Talvez daqui a alguns séculos (quiçá décadas), poderão nossos outrora pares nos julgar pelo egoísmo acéfalo e desumano disfarçados de “objetividade científica”, recheada de floreados herméticos, dignos de fazerem as pífias unidades de seres presentes nos Eventos terem sonhos molhados invejosos com nossa retórica rebuscada, sisuda e descartável.
Texto escrito por Cristiano Rodrigues de Souza – Bacharel em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e aluno do curso de Mestrado em História pela mesma Instituição.
Só eu que achei esse texto sensacional?! Parabéns cara. Sem palavras para dizer como eu concordo com você.
Sinceramente lisonjeado.
Obrigado Ana 🙂
Muito bom, Cris! Se levassem o Jornalismo a sério, estaríamos (nós, jornalistas) fazendo isso de uma maneira razoavelmente competente, traduzindo “no popular” os saberes acadêmicos que sempre acrescentam muito à vida de todo mundo, inclusive do picolezeiro. rs No entanto, depois que notícia virou negócio (sob todos os aspectos, desde a formação até a informação), ficou difícil entregar a tarefa aos veículos de comunicação. O jeito é descer do pedestal, despir-se da “objetividade científica” e bater mais papo com o vendedor de picolé! rs
mto bom! é a pura verdade, e ainda nos orgulhamos disso.
Antes o problema fosse só esse. Há casos em que sequer nossos pares conseguem acompanhar nossa linha de pensamento, e isso é grave, porque são eles que vão dizer em última instância se nosso trabalho vai ficar empoeirando por aí ou vai ser publicado, devorado e regurgitado em novos trabalhos, citados e recitados até que algum dia alguém com mais talento para a divulgação científica que a maioria de nós possa traduzí-los de uma forma que qualquer um entenda, ou, se não for ele, que pelo menos que um professor secundarista minimamente informado possa aproveitar e apresentá-lo às novas gerações e tirá-lo do limbo da irrelevância.
Todos os pesquisadores só deveriam ir dormir em paz quando visse os resultados do trabalho da sua vida publicados em sites do tipo: Você sabia?
A obtenção do conhecimento depende do interesse de cada um. Todo trabalho científico publicado pode ser uma obra útil para outros seres humanos interessados no seu conteúdo. Basta observar, como exemplo prático, o conhecimento passado por Newton, Einstein, Paulo Freire, algum artigo seu (caso tenha), meu, entre outros trabalhos…é interessante pra quem tiver o interesse de ler e pesquisá-lo. A informação do conhecimento não deve, de forma alguma, ser simplificado para que a “maioria” possa entender, é necessário justamente o contrário, que o conhecimento se mantenha tão intrigante, fascinante, inacabado e misterioso (complicado como é). É necessário despertar e preparar cada ser humano (Picolezeiro, Banqueiro, Pedreiro, Engenheiro…etc) para explorar sua curiosidade.
Embora triste realidade: Foda, mt bom!
Rapaz, realmente estou seriamente pensando em imprimir e emoldurar este texto!
Concordo com cada linha. Só cuidado para que a sua crítica não se desfaça ao usar uma escrita rebuscada demais….heheheh
Sinto muito, mas tenho sérias reservas quanto a este texto. O bom senso recomenda não colocar tudo em uma mesma visão e compreensão, isto é algo que deve ser observado. Dizer que tudo que se escreve em termos de pesquisa acadêmica não passa de discurso falacioso sem alcance nenhum significa desmerecer o trabalho e o esforço daqueles que se dedicam a buscar elementos que contribuam com a educação no Brasil. Sim, tem muita coisa irrelevante e de baixa qualidade. Sim, também tem muita coisa relevante e de ótima qualidade. Criticar por baixo geralmente é a alternativa mais fácil e covarde. Criticar responsavelmente, com comprometimento de causa dá mais trabalho e exige coragem. Que tal tratarmos de qualificar nossos trabalhos? Que tal tratarmos de valorizar a produção qualificada que existe sim? Além do mais, quem define, com certeza absoluta e sem margem de suspeita, os critérios de “bom” ou de “mau” ao que é feito por outrem? Pensemos a respeito e, se for para criticar, o façamos à luz de uma razoabilidade mínima.
Olá!! Achei interessante seu texto por retratar algo que venho pensando a muito tempo: Pq a maioria da população não tem acesso ou interesse por textos científicos? Reflito bastante sobre isso, e se vc me permite uma pequena consideração, creio que uma das coisas é a forma de escrita. No seu próprio texto, a forma como é escrita se faz entender, mas ñ é de livre acesso, uma vez que, caso um jovem leia esse texto, é bem capaz de interromper a leitura por não compreender alguns trechos. Penso que para ser de livre acesso, o primeiro passo é tornar a leitura simples. Esse passo é para deixar o texto sem muita firula para agradar A, B ou C, que acha que em algumas áreas do conhecimento tem-se que utilizar palavras usadas no século XIX, de forma a demonstrar conhecimento. Outra situação que me questiono bastante diz respeito as publicações: Para permitir o acesso a maioria das pessoas do ramo cientifico, somos cobrados a publicar em revista de nível elevado, as quais em muitos casos não estão aqui no Brasil, sendo assim como o picoleiro vai ter acesso a essa publicação? Outra situação é só ter acesso a alguns artigos mediante pagamento, pq devemos pagar por eles? Sei que tem os custos para favorecer o acesso a esse artigo, dessa forma, penso que no mínimo deveria ter alguma lei ou algo do tipo, que para o Brasil, todos os artigos publicados em revistas internacionais estivessem em um banco de dados criado pelo governo para diversas áreas escrito em português e gratuito mas com as referências da revista no qual foi publicado. Ora, se foi produzido em instituições públicas, se o cidadão pagou por ele, nada mais justo que tenha o acesso ao que foi produzido. Por fim, queria apenas agradecer por tocar nesse tema!!!
Falou e disse
Que lagal o texto, curti muito. Acordei para esta realidade apenas no neste meu penúltimo ano de graduação em Ciências Biológicas. Lamento muito que na minha formação de cientista, numa Universidade Federal, não tenha sido estimulado desde o primeiro semestre a pensar e questionar a suposta neutralidade e atemporalidade da atividade científica. A ciência deveria trabalhar para o povo, não para a exploração deste. Só quando todos os brasileiros tiverem a ciência e tecnologia trabalhando a favor deles, nada mais justo, afinal todos pagamos impostos altíssimos, vamos fazer ciência num país de todos. Por isto é importante que físicos, químicos, biólogos tenham uma formação crítica e politizada, para que seja transformadora e atenda aos interesses de quem realmente deveria atender.
Bem vindo ao clube! Masturbação ideológica é o que rola na UNEB, Uma lástima