por Flávio R. L. Paranhos*
“Dedico esse momento ao meu amigo Fulano, que é engenheiro, e sempre me provocou dizendo que doutor é quem tem doutorado.“
Uma medida tomada recentemente por uma empresa de seguros de saúde é, ao mesmo tempo, alvissareira e triste. Estabelece regras para o ganho do médico, valorizando aspectos como: formado há mais de dez anos, residência, especialização, mestrado, doutorado e docência. Quanto aos três primeiros, não há qualquer sombra de dúvida de que são indicadores de maior experiência e melhor formação e preparo profissionais. Mas será que isso vale também para mestrado e doutorado? Não. O mestre/doutor é necessariamente melhor médico do que o que não possui esses títulos? Não.
O que significa, então, para o médico ter mestrado/doutorado? Significa, na melhor das hipóteses, que se trata de uma pessoa com grande interesse em ensino e/ou pesquisa. Digo “na melhor das hipóteses” porque, infelizmente, há uma infinidade de outros motivos menos nobres para almejar esses títulos. Vaidade e marketing pessoal, para começo de conversa. Galgar posições políticas em sociedades médicas, subir na carreira universitária, melhorar o salário, etc.
Um erro grosseiro que se vem cometendo sistematicamente, e, o que é pior, encarado de forma natural, é a valorização cega e obsessiva dos títulos de mestre e doutor pelos meios oficiais de fomento à educação. Se determinada universidade tem mais mestres/doutores, é melhor conceituada, recebe mais atenção, enfim, mais dinheiro. Em conseqüência, temos universidades tradicionais tratando de garantir que seus próprios quadros abocanhem logo o título, e professores sem a menor vocação para a pesquisa sendo obrigados a enfrentar os cursos não como se fossem cursos, mas, sim, obstáculos à obtenção do amaldiçoado título.
Como diz Wladimir Kourganoff, em A Face Oculta da Universidade (Editora da Unesp), vocação para ensino não significa necessariamente o mesmo para a pesquisa e vice-versa, e o que se consegue com o atrelamento da produção científica à subida na carreira docente é apenas a figura dos pseudopesquisadores e pseudoprofessores.
Não há porque obrigar bons professores da graduação a passar pelo suplício (para eles) de um curso de pós-graduação. Existem meios mais inteligentes e justos para mantê-los atualizados. Por outro lado, não faz sentido obrigar pesquisadores a dar aulas, se essa não for sua vocação. O prejuízo é duplo: deles próprios e dos alunos.
O financiamento da graduação não pode depender do número de mestres/doutores ou mesmo da produção científica. Aliás, número de mestres/doutores não deve servir de parâmetro nem para a pós-graduação, pois seu financiamento e de seus laboratórios de pesquisa deveria depender exclusivamente de sua produção científica, quantitativa e qualitativa. Afinal, de que vale o título com a tese empoeirando nas bibliotecas, sem que seja sequer publicada ou mesmo inaugure uma linha de pesquisa regular?
Outra consequência bastante nociva dessa fome de títulos é a dificuldade de acesso aos cursos de pós-graduação, por parte de candidatos (com vocação) oriundos de universidades mais novas. Enfrentam a endogenia reinante em muitas das ditas tradicionais, e alguns acabam por desistir no meio do caminho.
Como consolo, apenas o fato de que, a médio e longo prazos, essa endogenia será fatal a essas universidades, resultando em completa decadência, pois instala um clima de inércia e desestímulo entre seus integrantes.
Mestrado e doutorado, antes de serem títulos, são cursos. Aprofunda-se em um tema específico que será objeto de um experimento científico para a elaboração da tese e, quiçá, inaugurador de uma linha de pesquisa. Para tanto, são de vital importância as disciplinas do chamado domínio conexo (metodologia científica, estatística e didática, por exemplo). Pois bem. É de estarrecer o desprezo que dispensam a essas disciplinas os alunos que evidentemente entram na pós-graduação com todas as credenciais do mundo, exceto a que mais interessa: vocação. Resultado: formam-se mestres e doutores sem a menor noção dessas matérias, aliviadas por obterem enfim o título.
Sou médico, não sou matemático, dizem, referindo-se à campeã das antipatias, a bioestatística (como se fosse possível realizar pesquisa científica sem, no mínimo, compreender seus fundamentos). Alguns, os chamados medalhões, chegam a contratar um verdadeiro exército para elaborar sua tese, com a alegação de falta de tempo. Terminam o curso como começaram: pseudopesquisadores.
“Sendo o termo da vida limitado, não tem limites a nossa vaidade”, escreveu o filósofo brasileiro Matias Aires. É verdade. Que o diga o rapaz da epígrafe, que fez doutorado para ser chamado de doutor.
P.S.: Será que estaria muito enganado se imaginasse que um bocado do que está escrito acima pode ser generalizado para outras áreas?
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* Médico, doutor em Oftalmologia pela UFMG e pós-doutorado pela Escola Médica de Harvard. Texto publicado na Revista Espaço Acadêmico, nº 12, maio de 2002 e publicado aqui com a autorização do autor.
Dica da @sibelefausto, contribuidora assídua do posgraduando.com.
Nao acredito que isso possa ser extrapolado para a area social, a comecar pela grande diferenca semantica entre “pesquisa” para a area biologica e para a area social. Um mestrado e mais ainda, um doutorado na area social trata-se muito mais de uma investigacao do que da sequencia hipotese -> experimentacao -> resultados. Sou defensora do ensino superior e mais ainda, do ensino de pos-graduacao, por acreditar que uma formacao mais completa promove uma analise mais profunda de temas muitas vezes abordados superficialmente na graduacao. Se o medico eh avesso a pesquisa laboratorial per se, pode procurar um doutoramento em bioetica, saude publica, sociologia medica entre tantas outras possibilidades. Conhecimento, ainda mais quando este foge da area de conforto do estudante, nunca eh demais e aprimora o profissional, o individuo e o cidadao.
Parabéns pelo texto e, ainda mais, a coragem de expor temática tão cara à Academia. A Academia brasileira atestou o que Machado de Assis falava no Séc. XIX ao escrever A Teoria do Medalhão. Somos um país onde o conhecimento passa pela titulação. Sei que estou sendo duro nas palavras. Sei, também, que não estou a faltar com a verdade. Acreditamos que a titulação nos traria conhecimento. Triste ilusão. O Brasil terminou por ser um país de Doutores e não consegue ter uma Universidade entre as 100 melhores do mundo. Não por falta de Títulos, mas de produção de conhecimento. Fico a me perguntar se pessoas como Sócrates, Platão, Aristóteles, Da Vinci, Shakespeare, Camões, Descartes,Voltaire, Rousseau, Marx, Engels, Smith, Weber teriam espaço em alguma Universidade brasileira ou teriam de fazer Especialização, Mestrado e Doutorado para ministrar uma aula sobre seu próprio conhecimento? Vou mais além. Não tenho esta posição de hoje ao ler este texto, defendo a muito tempo. O conhecimento vale mais que um título.
São assertivas corretas e bem fundamentadas. O problema é que toma o todo pela parte. Sim fica “o rabo abanando o cachorro” nesta busca por preencher estatísticas, pessoas cuja vocação é aumento salarial ou instituições preocupadas em “ficar bem na foto”. Da mesma forma as outras críticas, bastante pertinentes. Daí não se deduz entretanto:
a)Que haja erro em qualificar tendo como indicador proporção de mestres/doutores porque isto indica qualificação docente de variados tipos, a maioria necessária para um ensino superior de qualidade E isto NÃO é a única variável considerada na avaliação. Há muitas outras que compõem um quadro mais abrangente.
b) Que médicos com vocação docente sejam “obrigados” a fazer PG em laboratório. Há mestrados e doutorados em áreas clinicas e cirúrgicas se o objetivo é aprofundamento nestes temas. Para os interessados na docência há ainda cursos de PG em Educação Geral e Específica. Em SP cito a PG em Educação Médica da UNESP. No RJ o NUTES-UFRJ possui um programa de mestrado e doutorado dirigido para Educação em Saúde.
Cabe, acredito, um conjunto de críticas específicas, sem prejuízo de outras, por exemplo as que ja foram apresentadas no artigo. Não cabe entretanto atacar a utilização da titulação como indicadora de qualidade, pelo uso distorcido que se faz dela.
Ótima reflexão sobre os titulos! E realmente, tenho que concordar que titulo em si não significa um melhor preparo no exercicio da medicina. No entanto acredito que o impacto maior seja pela profissão apontada. Querendo ou não os médicos são os mais vaidosos, de maneira nenhuma estou desmerecendo essa profissão, mas em muitos lugares o médico acha inaceitavel ser tratado como Sr. Fulano. Acho que ter titulos, fazer pós-graduação, é importante, mas precisa ser muito mais uma vontade de enriquecimento intelectual do que financeiro ou narcisista. Aqui ainda é mais importante ter muitos doutores no papel para do que pesquisadores na pratica, e ainda, parece ser muito mais importante ter quantidade de publicações do que qualidade. Tenho a impressão de que precisa-se muito de se rever conceitos e valores na hora de categorizar uma profissão ou uma instituição.
O que? Mestrado e Doutorado são valorizados no Brasil?? Claro q não!!! Titulação é mais valorizada em outros países, como EUA, por exemplo. O mercado ñ quer dotô não. Quer profissionais q tenham formação relacionada às demandas do mercado e da sociedade. O Brasil ñ valoriza pesquisa cientifica, e consequentemente, ñ valoriza Doutores. Nosso desenvolvimento, processo produtivo e industrial está pouco ligado à pesquisa cientifica(ao contrário de outros países), pois exportamos comoditties (q é a base de nossa economia). Quase ñ existe desenvolvimento tecnológico nesse país. Doutorado só é util pra ser prof. universitário ou pesquisador em instituições publicas. Empresas multinacionais relutam em contratar candidatos com perfil “academico demais”, pois preferem quem ñ tem título mas tem experiencia no mercado (como trainees, por exemplo). O Doutorado só é relevante no meio acadêmico, por isso é muito limitante.
não existe universidade sem pesquisadores: a pesquisa deve fazer parte do cotidiano do ensino e da extensão. Ser professor universitário significa, sem dúvidas, fazer pesquisa: só ela pode produzir um bom ensino (de graduação, sobretudo).