O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Docente (Capes) são agências estatais que foram criados com objetivo de fomentar a ciência e a educação no Brasil.
Um dos idealizadores do Conselho Nacional de Pesquisa, fundado em 1951, do qual se originou o CNPq, foi o grande físico Cesar Lattes, que ficou mais conhecido pelo currículo que lhe leva o nome, e só não esteve entre os laureados ao premio Nobel porque os que costumam conceder essa honraria, em caso de dúvida, pendem para o lado dos compatriotas.
A Capes, idealizada pelo educador Anísio Teixeira, tinha por objetivo original a qualificação de professores, partindo do princípio óbvio de que não pode haver boa educação sem bons quadros docentes, e que, portanto, não adianta expandir o sistema educacional sem o recurso fundamental que determina sua qualidade: o professor. Esta era a lógica simples na qual se fundamentava o ideal de Anísio Teixeira. Ele tinha visão de futuro e sabia ser necessário para o Brasil adaptar seu sistema educacional para uma nova era de modernização econômica, que inevitavelmente viria de fora para dentro, e que, para acompanhar a tendência mundial, o Brasil precisaria de professores capazes de assimilar e transmitir os novos conhecimentos que se tornavam necessários. Portanto, era preciso fazer um trabalho de formação de quadros docentes adaptados às exigências de uma nova época. Era esse, em linhas gerais, o motivo original da criação da Capes.
Além do apreço à boa educação e à boa ciência, os idealizadores do CNPq e da Capes eram patriotas que achavam que o Brasil poderia percorrer o caminho já trilhado pelos países desenvolvidos. Não há dúvida de que, para isso, o desenvolvimento da educação, da ciência, e, por meio delas, da tecnologia, eram os ingredientes mais essenciais. No entanto, fazendo uma avaliação do comportamento dessas agências, nas últimas décadas, chegamos à conclusão que elas estão em flagrante contradição com os objetivos originais. Não estão honrando a memória dos grandes brasileiros que mais contribuíram para sua criação.
Certamente, as universidades públicas brasileiras poderiam contar com apoios importantes caso elas, de fato, funcionassem de acordo com os objetivos propostos originariamente, mas sem que, para isso, tivessem de se portar de forma subordinada e dependente, caso contrário, além da violação do princípio da autonomia, se estaria implantando instrumentos de controle governamental sobre o meio acadêmico, em clara violação a princípios consagrados do Estado Democrático de Direito e absoluto desacordo com a idéia de universidade como espaço da liberdade de pensamento, da liberdade de cátedra, da liberdade de expressão e do pluralismo de idéias. Mas, infelizmente, é isso que está acontecendo pari passu com a crescente relação de dependência financeira para com órgãos federais localizados em Brasília.
A partir do governo FHC essa relação de dependência acentuou-se, devido ao esvaziamento de recursos orçamentários destinados diretamente a elas, a ponto de implicar numa velada relação de subordinação. O CNPq passou a ditar os rumos da pesquisa e a Capes a ter poder de vida e morte sobre cursos de pós-graduação. Antes disso, já se havia criado uma aberração por meio do CNPq: a bolsa de produtividade em pesquisa, crasso exemplo de intromissão indevida no meio acadêmico.
Sei que falando isso vou, desde já, angariar as antipatias de um número grande de docentes que já se acostumaram a contar com essa forma de renda complementar. Mas é preciso dizer que isso está em contradição com o princípio da autonomia e a idéia de universidade como “consciência crítica da Nação”. Tal como está estabelecida, a bolsa de produtividade de pesquisa é uma distorção, porque, ao estabelecer uma vinculação direta do CNPq com cada docente pesquisador simplesmente “passa por cima das instituições”.
Se fosse para premiar produtividades excepcionais em pesquisa, algo que, a meu ver é muito difícil de aferir à distância, melhor seria que determinadas quotas de bolsas fossem concedidas às universidades, segundo critérios muito bem definidos, para que estas fizessem a distribuição interna segundo seus próprios critérios e objetivos, os quais, naturalmente deveriam ser definidos mediante ampla discussão entre a comunidade interessada.
Essa “ligação direta” com os docentes, extremamente vulnerável a fisiologismos de toda natureza, abre a possibilidade de que uma burocracia brasiliense possa influenciar nos rumos da pesquisa nos campus universitários espalhados pelo país, e assegurar a certas oligarquias científicas bem estabelecidas acesso privilegiado a recursos públicos significativos. Outros canais de influência são as destinações indiretas de verbas extraordinárias de convênios que dirigentes universitários se acostumaram a disputar, “de pires na mão”, e que também são extremamente susceptíveis ao tráfico de influências.
Tal situação é especialmente lamentável a todos os que vieram para a universidade pública imaginando fazer parte de uma instituição fundamental do Estado e não mais um órgão qualquer de governo, sujeito aos “humores” da política.
É comum ver docentes da universidade pública, contratados em regime de dedicação exclusiva, que se apresentam ao mesmo tempo como “professor universitário” e “pesquisador do CNPq”. Isso mostra que falta definir ainda se a dedicação exclusiva é para ser entendida no aspecto institucional ou funcional.
A valer o primeiro caso, ninguém da universidade pública, com DE, poderá ser chamado de pesquisador do CNPq, posto que, tal regime necessariamente pressupõe o envolvimento, na universidade, com a tríade: ensino, pesquisa e extensão, indissociavelmente, sem qualquer vínculo com outra instituição.
Se for entendida no aspecto funcional, isto é, como dedicação exclusiva à atividade acadêmica, o vínculo docente com instituições não-universitárias poderia ser permitido, mas isso inevitavelmente introduziria algum desequilíbrio na tríade. É isso que acontece com os bolsistas do CNPq, para os quais o lado da pesquisa acaba ganhando mais peso, em detrimento do ensino e da extensão.
A pesquisa é incentivada, pelas bolsas de produtividade em pesquisa, mas ninguém incentiva a educação superior, como atividade formadora de opiniões políticas esclarecidas e de profissionais de alto conteúdo ético, que estão muito em falta neste País.
Se existe um órgão lotado no Ministério da Ciência e Tecnologia, para fomentar atividades que lhe dizem respeito, é lógico supor que o mesmo deveria acontecer no MEC, se for para fomentar a educação. Mas, na verdade, isso não ocorre.
Um exame da missão da Capes, disponível em seu sítio da internet, indica maior compromisso com pesquisa científica do que com a educação superior propriamente dita. Há bom tempo que sua principal função tem sido fomentar e avaliar cursos de pós-graduação, atividades para as quais foram destinados cerca de 75% dos recursos orçamentários executados pelo órgão em 2009 (cerca de um bilhão e setecentos milhões de reais).
Até aí nenhuma incoerência, uma vez que os cursos de pós-graduação também fazem parte da função educação. Contudo, os parâmetros de avaliação e critérios de distribuição de recursos utilizados priorizam as atividades de pesquisa vinculadas aos programas de pós-graduação, como é o caso de publicações em revistas científicas indexadas, fator preponderante na pontuação aos programas.
Outro fator importante é o que se chama de inserção internacional, entenda-se “convergência de conteúdos disciplinares e programas de pesquisa a padrões ditados de fora para dentro”. Podemos chamar a isso de fomento à educação superior nacional?
Na verdade, esses critérios estão contribuindo para aumentar as desigualdades de condições entre instituições públicas brasileiras de ensino superior. As instituições que não operam com pós-graduação ficam limitadas às dotações orçamentárias do OGU diretamente alocadas à função educação superior. As que possuem programas de pós-graduação, tradicionalmente as melhor localizadas em relação aos centros de poder, têm acesso diferenciado a recursos extras provenientes de transferências da Capes e do CNPq.
Assim, nosso sistema de ensino superior pode ser dividido em dois segmentos: um que subsiste em condições miseráveis, mas independente das agências reguladoras, e outro constituído pelas universidades com tradição em pesquisa, mas que depende crucialmente dessas fontes de recursos, razão pela qual a Capes adquiriu um poder de vida e morte sobre as instituições que dele participam.
A criação de novos programas de pós-graduação, com uma mínima garantia de recursos, depende de sua aprovação, em conformidade com os padrões ditados, ao passo que os programas já existentes que não obtiverem pontuação suficiente para alcançar classificação igual ou superior a quatro perdem acesso aos recursos e são praticamente condenados à extinção.
Nessa relação subordinada, tudo o que os docentes podem fazer é seguir os ditames da Capes, que os coordenadores colocam na mesa de reuniões, e ponto final.
Estando, de fato, mais focada na atividade de pesquisa do que na educação, a Capes se coloca numa área de superposição com o CNPq, desvirtuando-se em relação aos seus objetivos originais, que era o da formação de quadros docentes qualificados. Na universidade pública, isso pressupõe a formação não apenas de pesquisadores ou tecnólogos, mas, sobretudo, de docentes politizados e pensadores das problemáticas nacionais, capazes de contribuir para a formação de agentes de transformação social.
No entanto, por força das ingerências dessas agências, introduziu-se um viés cientificista-tecnológico a ponto de fazer com que as atividades nas áreas de humanidades sejam regidas pelos mesmos parâmetros das ciências naturais, exatas e tecnológicas. Trata-se de uma imposição autoritária do monismo metodológico pelas oligarquias científicas que determinam critérios que são mais convenientes a eles próprios, à revelia do povo e do País.
Essa é a razão pela qual se vê hoje tantos cientistas políticos, sociólogos, filósofos, historiadores, economistas, geógrafos, antropólogos e outros profissionais das humanidades completamente alheios à nefasta tendência social brasileira. O que estão fazendo eles? Estão elaborando projetos de pesquisa para o CNPq, preenchendo relatórios de prestação de contas, atualizando ininterruptamente o currículo Lattes, prospectando editais e correndo atrás da publicação de papers em revistas indexadas, como parte do esforço para que os programas de pós-graduação aos quais pertencem alcancem os pontos necessários para continuar existindo.
É paradoxal constatar que a Capes esteja, de fato, contribuindo para a alienação da classe que deveria estar pensando criticamente o País. O clima de alienação no meio acadêmico é visível na falta de debates, na ausência de conferências indignadas, e mesmo de panfletagem nos meios de comunicação de massa, como era comum em outros tempos de luta pelas liberdades democráticas. Tanto barulho por nada.
Os painéis temáticos dos congressos nas áreas de humanidades no Brasil hoje são de uma pobreza assustadora. O que mais se vê são discussões de métodos e assuntos especializados de baixa relevância, por grupos restritos de especialistas que só se comunicam entre si. Enquanto isso, o Brasil caminha na direção contrária do desenvolvimento, com um povo majoritariamente carente de habitação, educação, cuidados pessoais, sendo tratado como gado nos meios de transporte coletivo e no SUS; com uma classe média cada vez mais ameaçada pelo avanço do consumo de drogas, e da morte violenta pelo crime e acidentes de trânsito, devidos à precariedade e a incúria de órgãos estatais que deveriam zelar pela segurança das famílias.
Na origem de tudo isso está um Estado que se esfacela moralmente a olhos vistos, enquanto os “cientistas sociais” permanecem num silêncio de sarcófago. Se vivos estivessem, o que diriam Cesar Lattes, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, entre outros patriotas que sonharam com um Brasil grande?
_________________________________________________________________
Texto escrito por JOSÉ MARIA ALVES DA SILVA, Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo e Professor Associado da Universidade Federal de Viçosa, e publicado originalmente em ADUNICENTRO – Sindicato dos Docentes da Unicentro, disponível em http://adunicentro.org.br/novo/?p=2827. Reproduzido sob autorização da fonte.
Perfeito
Cara você é professor da UFV e quer ter os mesmos benefícios dos professores das universidades “top de linha” do Brasil ? É a mesma coisa que um jogador do XV de Piracicaba exigir um salário de um jogador do Barcelona ? Se quer melhores oportunidades corra atrás de um emprego melhor.
“Universidades top de linha”?? Que nojo!
Qual universidade pública brasileira é top de linha? Há universidades grandes e metidas, mas que estão tão ferradas quanto as menores e mais recentes universidades. Todas as universidades públicas estão sucateadas.
E ser professor da UFV é um grande e importa salto na carreira. Talvez você não tenha passado no concurso e não saiba o que é isso.
Dei uma gargalhada quando li o “top de linha”. Não existe isso. Um pesquisador na UFV pode ser tão bom quanto qualquer outro no Brasil e no mundo. O maior erro que um pesquisador pode cometer é se depreciar com base na instituição onde trabalha. Se, como dizia um professor, “cada um se dedicar como se estivesse na Harvard, em cem anos, a Harvard vai deixar de ser grande coisa.” E a ilustre UFV vai bombar.
Só cabe comentar que a UFV é notadamente uma das melhores universidades brasileiras, seja qual for o ranking.
Só se for a melhor universidade brasileira de Viçosa. Se procurar em qualquer ranking internacional vai ver que ela nem é mencionada. Até no ranking da Folha de São Paulo, que só tem universidades brasileiras, ela aparece em 22º lugar. Ou seja, não passa de uma universidade de vigésima categoria.
http://ruf.folha.uol.com.br/rankings/rankingdeuniversidades/
Portanto o autor tem que parar de xororo e tratar de buscar um emprego melhor. Se realmente ele se importa com pesquisa.
por que não!?! Que pensamento pequeno e capitalista: “corra atrás de um emprego melhor”! Você naturaliza a realidade, como se mudanças fossem impossíveis, mesmo em universidades que não são “top de linha”…Aliás, que termo chulo este que vc utilizou: “top de linha”…..
1. Tem universidade “top de linha” no brasil? Isso é linguajar de comprador de Volkswagen, quando tenta depreciar um Fiat uno.
2. O professor esta satisfeito com o emprego dele, porém o texto foi longo de mais para sua sua capacidade de interpretação.
3. Comente sobre a desvirtuação de finalidade de existência do CNPq e Capes, que é o real tema do texto.
A UFV é a universidade brasileira com maior número de programas de pós graduação nota 6 e 7 em ciências agrárias do Brasil.
Tem o curso de direito que mais aprova na OAB do brasil na soma dos três últimos exames.
Mantém a melhor escola pública brasileira de ensino médio, única pública entre as 10 melhores do Brasil.
Foi a primeira universidade brasileira a criar um curso de mestrado, em 1962, sendo a primeira a implantar um sistema moderno de pós-graduação no Brasil.
Tem uma das internacionalizações mais antigas do brasil, enviando professores para pós-graduação no exterior desde a década de 1940, e recebe professores do exterior desde a década de 1920.
Foi a primeira universidade brasileira a criar cursos de Engenharia florestal e economia doméstica.
Se isso é uma universidade pequena, não sei o que é uma universidade grande.
Prezado autor de importante matéria no ramo de educação e do debate sobre o papel da Universidade Pública Brasileira. Quero parabenizá-lo pelo que escreveu. Leciono desde 1978, na rede federal, coordenei pós-graduação apoiado pela CAPES, no período de 1991 a 1997, para sessenta professores da rede federal e que puderam contribuir com o avanço tecnológico de suas escolas federais de origem e puderam melhor preparar os respectivos alunos para o desenvolvimento econômico das regiões em que residem. Tratava-se do PCDET e de fato, este era o real papel da CAPES. Na década de 80, participei ativamente para que a Constituição De 1988 garantisse um bom capítulo á educação e mais que isto, que a universidade pública pudesse reunir recursos financeiros, humanos capazes de torná-las autarquias autônomas a serviço da nação brasileira, prevendo o futuro a ponto de ofertar cursos e formação a seus alunos de forma a influenciar positivamente o mercado de trabalho e não ficassem a reboque dele como ocorre atualmente. O pior é que, mesmo tendo trabalhado por longos anos, ampliando a representação sindical dos docentes federais, com novas ADs e depois seçoes sindicais, hoje assiste-se, uma incansável luta pela carreira docente e nas propostas, tanto do governo quanto dos sindicatos, ressalta-se como produção acadêmica e pontuação para promoções verticais, a pesquisa universitária, em contrapartida, a extensão e o ensino ficam em menor escala….. desvalorizando assim a tríade indissociável. Precisamos estabelecer debates dess natureza nas instituições em que trabalhamos. Mais uma vez, Parabéns.
Parabéns sr. José, pelo excelente texto. Parece que as pessoas não querem ver ou fingem não querer. É tão mais comodo…
Grande artigo !