As habilidades acadêmicas são úteis em outras áreas?
São 3 da manhã. Seus olhos ardem e não conseguem mais focar a tela do computador. Ainda falta escrever mais da metade da tese, mas você já sabe a conclusão: desisto!
Ilusões perdidas
O brilho já sumiu do seu olhar faz tempo. Você se transformou em um burocrata científico cumpridor de protocolos e prazos que já não fazem sentido muito sentido para você.
Toda vez que alguém te pergunta “E aí, como vai a pós?”, você responde com uma resposta evasiva para então mudar o assunto da conversa o mais rápido possível.
Às vezes, essa sensação de cansaço é apenas reflexo de uma sobrecarga de trabalho momentânea. Todos nós passamos por fases de correria. Mas se a desesperança perdurar por muito tempo, preste atenção: isso pode ser um sinal de que as coisas não andam muito bem.
Se você se identificou e sente uma vontade incontrolável de chutar o balde e desistir da vida acadêmica, não se sinta culpado.
Um número considerável de pós-graduandos e pesquisadores está apenas esperando vencer o prazo da bolsa para poder ganhar a alforria e viver a vida que deseja sem precisar devolver o dinheiro para as agências financiadoras.
Professores se vêem sobrecarregados com tarefas paralelas, muitas delas totalmente desconectadas de sua especialidade, e se desiludem com as perspectivas de se reduzir a um operário do ensino superior.
Se pudessem, muitas pessoas pegariam um megafone para gritar: “parem o mundo acadêmico que eu quero descer!”.
E há vários motivos para isso.
1. “Não era isso o que eu queria”
Continuar se abrigando no ambiente universitário é uma alternativa segura para presas frágeis de um mercado de competitividade predatória. Isso acontece com mais frequência em determinadas áreas em que o mercado de trabalho é cruel e implacável com recém-formados.
Sem muita inclinação para a atividade de pesquisa, essas pessoas descobrem tarde demais o que é o mundo acadêmico e as perspectivas pouco animadoras da carreira de cientista.
2. Desestruturação da carreira
Valores insatisfatórios, ausência de regulamentação, concursos altamente disputados, escassez de financiamento de pesquisa entre tantos outros inconvenientes já problematizados por gente graúda na ciência brasileira.
3. Falta de dinamismo
Aqueles que têm a sorte de emplacar um concurso, não raramente ficam presos em uma teia burocrática que desencoraja qualquer tentativa de inovação. Tanto os modelos de ensino quanto as agendas de pesquisa estão fortemente submetidos a pressões institucionais que inibem rupturas de qualquer tipo.
4. Mercantilização do ensino superior privado
Aqueles que não consegue emplacar um cargo de docência em uma universidade pública se vêem obrigados a fugir para o ensino superior privado, que vem se transformando cada vez em uma mercadoria educacional de baixa qualidade.
Excetuando as instituições mais tradicionais, as faculdades privadas tratam seu corpo docente como peças descartáveis de sua engrenagem mercantilista. Não raramente, o professor se vê obrigado a lecionar matérias não relacionadas a sua área de formação.
Caindo fora
Dos alunos de iniciação científica até professores doutores (des-)empregados, parece haver uma atmosfera de mal-estar generalizado.
Uma prova concreta disso são os altos níveis de incidência e aceitação de distúrbios mentais e emocionais na academia.
A lei de ferro do publish or perish (publique ou pereça) está sempre lá para relembrar que se você não está publicando, você está perecendo . E há muita gente por aí perecendo lentamente sem a menor esperança de enxergar uma saída de emergência.
Atenção: Antes de continuar, precisamos relembrar que essas perspectivas negativas não se aplicam para todo mundo e também não são nenhuma exclusividade da academia.
Outras áreas também compartilham de problemas idênticos ou similares.
Habilidades acadêmicas preciosas
Tudo bem. Você está consciente de todos os aspectos da problemática e quer decididamente largar a vida acadêmica.
Na hora de preparar o seu currículo, bate aquela baixa-estima quando você se dá conta de que, durante todos esse tempo de pesquisa, não acumulou nenhuma experiência que possa chamar a atenção dos departamentos de RH das empresas.
E agora?
A verdade é que pesquisadores e acadêmicos têm habilidades que valem ouro no mundo corporativo.
Mas eles consideram essas aptidões como pressupostas e esquecem que, dentro das empresas, elas são qualidades invejáveis altamente disputadas.
Está curioso para descobrir seus talentos? Então dá uma olhada:
1. Senso crítico:
Erros grosseiros são cometidos diariamente por funcionários que não se dão ao trabalho de questionar decisões.
Empresas normalmente costumam sistematizar processos e, espantosamente, pouca gente tem a ousadia de propor novas maneiras de executar a mesma tarefa. Enxergar o panorama geral de um problema e trabalhá-lo criticamente é uma exigência básica para o bom pesquisador, mas ainda não é uma competência universal – use isso a seu favor.
2. Resolução de problemas:
Em palavras grosseiras, o cientista é um excelente “solucionador de problemas”. O que é o percurso de pesquisa senão um grande problema a ser resolvido com cálculos, experimentos, levantamento de dados, análises estatísticas, etc.?
Você sabe bem como encontrar soluções para impasses e situações sem script pré-determinado. A diferença é que, no mundo corporativo, essa tomada de decisões se dá em outro ritmo.
3. Flexibilidade intelectual:
Você tem um poder de raciocínio flexível e acostumado a grandes níveis de abstração e complexidade. Aventar hipóteses, calcular consequências possíveis, lidar com a ambiguidade, controlar variáveis: isso tudo é arroz com feijão para você. Mas para um executivo acostumado apenas à imediatez das urgências, isso tudo é absolutamente desesperador.
Em um universo dominado por pressões de curtíssimo prazo e limitado às praticidades ao alcance da mão, você pode se dar bem exercendo sua capacidade de pensamento analítico e estratégico.
4. Capacidade de argumentação:
Um infinitude de livros e workshops prometem a salvação de empresários com ideias ótimas e capacidade expressão verbal próxima de um crustáceo. Quantas promoções e aumentos de salário já não foram perdidos por executivos que não souberam se explicar na hora H.
Se você está na pós, com certeza você passou por uma entrevista de seleção. Você já participou de simpósios e apresentou dados complexos em um intervalo de tempo restrito para uma plateia implacável. Você sobreviveu a uma banca de mestrado/doutorado.
Argumentar sobre as vantagens de um novo projeto ou apresentar o desempenho de uma equipe vai ser moleza!
5. Tomada decisões baseadas em dados:
Quantas empresas não tomaram preuízos titânicos por causa de decisões tomadas na base da intuição, do chutômetro, do “feeling” – enfim, qualquer parâmetro mais ou menos consistente e pouco defensável.
Acrescente aí uma capacidade de argumentação sofrível e você terá um bom retrato do mundo corporativo: empregados mal-articulados tentando aprovar decisões com base em achismos particulares.
Seus longos meses dentro de um laboratório te ensinaram a argumentar sempre com evidências empíricas. Antes de tirar conclusões precipitadas, é preciso verificar o que os dados dizem.
Para um cientista, isso é protocolo de pesquisa. Para um executivo, isso é uma prova de credibilidade rara no mercado.
6. Persistência
Você já fez revisão bibliográfica vastíssima, aplicou infinitas correções que seu orientador rabiscou no seu artigo ou tese e se debruçou por dois anos (no mínimo!) sobre o mesmíssimo tema.
Às vezes, o próprio processo de admissão na pós-graduação exige várias tentativas.
Isso é um fato inegável: obstinação é um pré-requisito indispensável na academia.
Porém, o mundo corporativo admira pessoas que não desistem na primeira resposta grosseira do chefe ou quando aquela ideia de projeto promissor fracassa miseravelmente.
Valorize-se!
Todas essas habilidades são conquistadas com muito suor, trabalho duro e algumas situações constrangedoras na pós-graduação. Porém, nem todo mundo tem essas capacidades e elas são mais raras do que você imagina – principalmente fora da academia!
Isso não significa que o mundo corporativo te receberá de braços abertos. Algumas turbulências serão inevitáveis para se adaptar à nova atmosfera.
Mas quem está decidido a não ficar mais no mundo acadêmico, pode contar com um bom conjunto de qualidades para se aventurar em outros mares.
Esse texto está tão Schopenhauer…
Legal, mas como aplicar isso em um ‘curriculum vitae’ por exemplo?
Giovanna, eu sugeriria uma apresentação bem redigida, de preferência com o auxílio de um coach ou um profissional de Storytelling. Como vc mesma deve ter desconfiado, recrutadores de RH não se convencem muito com palavras soltas em um currículo. Mostrar com dados concretos porque essas habilidades são úteis para a companhia pode ser uma alternativa mais palpável 🙂
Bem com todo respeito a Lucas Shimoda, no texto acima sobre as habilidades acadêmicas preciosas, no segundo prarágrafo :Na hora de preparar o seu currículo, bate aquela baixa-estima …BAIXA-ESTIMA???!!!!!
olá Maurício, obrigado por observar meu erro grotesco! Pessoas como você que de fato lêem os textos além do título também devem ter percebido a falta de um “de” em “tomada decisões baseadas em dados” no título 5. Realmente, esse texto deveria ter passado por uma revisão mais cuidadosa. Obrigado pelo feedback!
Ótimooooooo! Gostei! Vou tentar aplicar! rs Valeu as dicas!
Depois volte para contar para gente se deu certo ou não – acho que vai ter mais gente querendo saber também! 🙂
Achei muito interessante o seu texto, Lucas. Parabéns!
Apenas queria saber como você descobriu esses 6 talentos. Sabe me dizer se existe algum estudo a respeito?
Obrigado!
Olá, seu post é bem intencionado, mas posso garantir que as chances de um acadêmico na iniciativa privada são muito restritas;
Fui gerente de RH de grandes empresas durante muitos anos, e as empresas simplesmente desprezam pessoas que vem da área pública e/ou acadêmica por um simples motivo: estas pessoas não sabem fazer nada na prática e gerar resultados rápidos (mas obviamente nenhuma empresa assume isso abertamente)
Portanto, para aqueles que pensam em sair da área acadêmica e ir para empresas, pensem duas vezes, dez vezes. Suas chances são muito pequenas.
Olá, Franklin
Obrigado pelo teu comentário, é bom contar com a perspectiva de alguém que esteve “do outro lado da linha”! Você teria alguma experiência pessoal sobre isso para dividir com a gente?
Desprezível esse comentário do Franklin, totalmente equivocado além de extremamente ofensivo quando afirma que ” essas pessoas” do meio acadêmico não sabem fazer nada na prática nem gerar resultados. O senhor deve ter trabalhado em empresas muito boas mesmo com esse tipo de ideologia. Felizmente nas empresas que trabalhei, tanto no Brasil quanto fora do país, o pensamento é completamente oposto, e sinceramente espero nunca trabalhar em uma empresa com ambiente tão nefasto e “profissionais” tão limitados dentro do seu setor.
Na realidade, duvido muito esse ser o pensamento predominante no RH de empresas sérias, mas se for a realidade até entenderia seu ponto de vista, afinal o pessoal do RH é na grande maioria das vezes (>90%) extremamente limitado para compreender as reais necessidades e qualificações necessárias para uma vaga, principalmente se esta vaga for mais técnica.
Muito bom o artigo, são pontos a serem discutidos em uma entrevista.