Todos nós temos uma boa dose de dissonância cognitiva: simplesmente confiamos demais em nossos próprios cérebros, e ignoramos aquilo que não queremos ou não aceitamos (B. Russell era genial neste tema).

Muitas vezes, definimos que X é verdade não porque há fatos que indiquem isso, mas porque “queremos” que X seja verdade (ou achamos que X é bom, logo, deve ser verdade – e viva a lógica…).

Ter um nível de instrução mais elevado deveria significar que o nosso nível de dissonância é significativamente mais baixo, ou seja, que somos pessoas menos “enganáveis” e menos ingênuas.

Mas nem tudo é tão simples assim.

Infelizmente, instrução não necessariamente está correlacionada a uma menor dissonância cognitiva – e essa correlação me parece ser mais baixa em países menos desenvolvidos, simplesmente porque quanto mais desenvolvido o país, maior será a qualidade média da instrução.

Por essa razão, um graduando médio da Holanda muito provavelmente terá um nível educacional mais elevado do que um graduando médio do Equador: exceções à parte, essa é uma conclusão relativamente segura que podemos tirar de qualquer índice de qualidade educacional disponível hoje em dia.

O assunto deste artigo não é a dissonância propriamente dita, mas sim o fato de as pessoas “separarem” seu modo de pensar de acordo com a situação.

Ou seja: se você é um cientista (e, portanto, conhece estatística e probabilidade) que aposta na Mega Sena, você está interrompendo o seu pensar racional para um momento de lazer (particularmente não vejo grande mal neste ponto).

Existem diversos outros exemplos, veja abaixo:

1. Ter filhos reduz a qualidade de vida de um casal (isso é intuitivo, mas ainda assim foi confirmado por pesquisas, e é muito discutido no fim do livro The Moral Landscape, de S. Harris). Você deve achar que será uma exceção, certo? Pois é: há pesquisas que examinam exatamente os que se dizem “exceções”. Adivinhe: não são. Muitas pessoas que ouvem esse tipo de frase ficam bravas, e se sentem atingidas em um nível pessoal (esse é geralmente o primeiro estágio do “ouvir aquilo que não gosto!”).

2. Sonegar imposto de um governo corrupto não é tão errado, certo? Dissonância pura: quando você é o agente, a tendência é achar que a situação é “diferenciada”. As pessoas geralmente acreditam ser “únicas”, diferentes etc.

3. Eu gosto do livro X, mas 60% dele tem coisas que meu julgamento moral abomina. Portanto, eu decido que esses 60% são metafóricos, e os outros 40% são literais. Esta é clássica…

4. A pessoa viaja e passa um ano em uma cidade nos EUA. Ao longo desse ano, ela crê estar em condições de escrever sobre o país inteiro, generalizando a cultura, o povo e os costumes, e fazendo comparações baratas entre aquele país e seu país natal. Conheço professores universitários que fazem isso. É como aquela pessoa que vai até Paris, passa 20 dias, e volta dizendo que acha os franceses muito mal educados. Digamos que não seria uma boa ideia confiar no conhecimento estatístico desse ser.

A lista poderia continuar… por muitas linhas.

O ponto a que quero chegar é: eu conheço (e você também deve conhecer) *muitas* pessoas bastante instruídas, que fazem Mestrado/Doutorado, e que jamais pensariam de forma tão torta dentro da academia.

Contudo, muitas dessas pessoas decidem “parar” a razão quando não estão trabalhando.

Ou seja: em meu trabalho, eu só aceito X se há evidências para X; mas para minha vida, aceito qualquer coisa que me agrade.

Isso não só é um exemplo de dissonância, mas também um exemplo de um exercício intelectual para que eu conforme o que sei com o que sinto. É como a pessoa que sabe que está sendo traída mas decide fechar os olhos.

Há cientistas dissonantes em qualquer lugar do mundo (imagino), mas talvez seja possível dizer que é mais comum encontrá-los em lugares onde a educação é mais fraca.

Falo, aqui, inclusive da educação de base, aquela que nos ensina a pensar quando somos crianças – pois esta é extremamente fraca no Brasil, infelizmente.

Acho constrangedor ver alguém bem instruído falando ou escrevendo coisas ingênuas, que não tem o menor senso crítico que se espera de alguém minimamente informado.

Pessoas que fazem pós-graduação ocupam o nível acadêmico mais elevado em um país, e é certamente preocupante se essas pessoas cometem falácias lógicas com convicção no seu cotidiano.

Seria legal se as pessoas pensassem um pouco mais na imagem que passarão ao darem uma opinião ingênua, crédula e simplista: se não fazemos isso dentro da academia (espera-se), por que fazer isso fora dela…?

Ser crítico e racional apenas em horário comercial é como um malabarismo, que tenta equilibrar ciência e dissonância cognitiva em um cérebro que deseja conquistar o conhecimento sem abandonar a fada do dente.